domingo, 23 de agosto de 2009

A onda das versões

Istoé

No Brasil tem-se a tradição de se fazer versões de músicas estrangeiras. Na era do rádio, nos anos 1940, o compositor Haroldo Barbosa abastecia Francisco Alves com letras espirituosas. Chegou a assinar mais de 500 versões. Aí veio a jovem guarda, na década de 1960, e a moda voltou: até o refrão "iê, iê, iê" saiu do beatlemaníaco "yeah, yeah, yeah". Mesmo compositores que fizeram fama por versos literários, como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, não resistiram à tentação.

Um dos maiores sucessos de Gil é, aliás, uma versão: "Não Chore Mais" ("No Woman, no Cry", de Bob Marley), que vendeu 750 mil cópias. É uma das melhores adaptações já feitas. Outras acabam de chegar às lojas. No CD "Pelo Sabor do Gesto", Zélia Duncan assina duas ótimas letras em português para canções do francês Alex Beaupain. Com 13 clássicos da canção americana, compostos por músicos judeus, o CD "Nego" traz impecáveis versos refeitos pelo compositor Carlos Rennó. O time de intérpretes faz jus às músicas: Gal Costa, João Bosco e Erasmo Carlos, entre outros.

Rennó defende as traduções que respeitam não apenas o sentido, mas até a métrica e as aliterações do original. "Dá um trabalho do cão. Às vezes, passo a madrugada inteira para escrever um versinho." A letra de "Encantada" ("Bewitched, Bothered and Bewildered", de Rodgers/ Hart), gravada no disco por Maria Rita, reproduz mesmo as rimas atípicas, que acontecem num termo anterior ao do final do verso. "Se for para fazer letra diferente do original, chamo um parceiro e faço outra canção", diz ele. Existem os que optam por essa receita e, ainda assim, conseguem bons resultados. Caso de Nelson Motta, que se afastou bastante da canção napolitana "E Po Che Fá" (de Pino Daniele) em "Bem Que se Quis", sucesso de Marisa Monte: "Há momentos em que a gente tem sorte e as palavras em português cabem perfeitamente, parecendo que sempre estiveram ali."

As traições ficam evidentes quando os versionistas "viajam" no som das palavras e se distanciam totalmente do sentido da canção matriz. Seu Jorge, por exemplo, fez isso no disco originado de clássicos de David Bowie. O refrão de "Rebel, Rebel", ("rebelde, rebelde, como eles poderiam saber") virou uma coisa maluca e sem sentido: "zero a zero, você venceu". Muitas vezes as editoras dos músicos estrangeiros fazem vista grossa para essas liberdades. Mas não é a regra. Há oito anos, quando preparava o CD com repertório dos Beatles, Rita Lee teve seis letras recusadas, entre elas "O Amor é Tão Clichê" ("I Want to Hold Your Hands"). Só agora, no CD "Multishow ao Vivo", conseguiu gravar "O Bode e a Cabra", recriação absurda da mesma canção dos Beatles, dos tempos da jovem guarda.

O caminho oposto (ser muito literal) facilita na hora da negociação, mas pode cair na armadilha da fidelidade exagerada, especialmente em versões feitas do inglês, língua mais sintética que o português. Isso acontece em algumas faixas do CD "Tá Tudo Mudado", que Zé Ramalho dedicou à obra de Bob Dylan. Mas, mesmo quando incorporou elementos alheios ao universo do americano, como referências ao filme "Tropa de Elite" e ao músico Jackson do Pandeiro, ele não teve recusas. Só não conseguiu um bom contrato: 100% dos direitos autorais vão para Dylan. "Eu fiquei apenas com os royalties fonográficos (as vendas do CD)", diz Ramalho. "Era pegar ou largar." Zélia Duncan também não ganha nada pelas ótimas versões. "Acho um absurdo que não haja um acordo. O versionista é um parceiro do autor da música."

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