segunda-feira, 1 de julho de 2013

Elis Regina: Ela vive


Depois de um tão desejado, esperado e planeado dia de praia, um jantar à beira rio numa noite quente como poucas em Portugal e um copo de vinho a acompanhar, o sábado do público que acorreu ao concerto de Maria Rita no Meo Arena, em Lisboa, tinha que terminar com as emoções condizentes que só uma das grandes divas da música brasileira do século XX podia proporcionar: Elis Regina.

Elis Regina é hoje um ícone incontornável do Brasil, "amaldiçoada" pelo povo que a viu partir precocemente (a cantora morreu em 1982, com apenas 36 anos) e assim perdeu uma das figuras que participou mais activamente no arranque da MPB (Música Popular Brasileira), tendo coleccionado um rol impressionante de interpretações imortalizadas ao longo dos seus 20 anos de carreira - no ano passado já se assinalaram os 30 anos passados sobre a sua morte. Como tal, a filha, Maria Rita, não tem, nestes concertos, a vida facilitada ou a crítica musical a seus pés. Vale-lhe, sobretudo, a coragem de passar à sua geração e às mais jovens ainda, um pouco do legado único que a mãe deixara.

Vestida de branco integral, num cenário extremamente simples que começa por ser de um azul celestial, Maria Rita terá, certamente, procurado ir ao encontro desse mesmo imaginário de Céu, uma vez que ela própria parece um anjo que começa por cantar 'Imagem', 'Arrastão' e o sucesso para toda a vida 'Como Nossos Pais'.

Acompanhada em palco por quatro músicos, Maria Rita aproveita esta altura para trocar as primeiras palavras, emocionadas, de agradecimento ao público pela forma como ainda se lembra da mãe que considerou, com o mesmo ego que a própria Elis tinha, «a maior cantora que o Brasil jamais terá». De lembrar que Elis Regina chegou a dizer que o Brasil só tinha duas cantoras; ela própria e Gal Costa. «Enquanto ela for viva no vosso coração, sei que não partiu para lugar nenhum», disse Maria Rita antes de voltar a cantar, com uma voz nada amadora, 'Vida de Bailarina', 'Bolero de Satã' e aquele que foi o tema mais aplaudido até este momento, 'Águas de Março'. Claramente o público que passou esta noite pelo MEO Arena compôs-se, na sua maioria, pelos ouvintes da rádio dos anos 60 e 70 que conheceram a Elis revolucionária, contestatária e destemida. Não raras vezes a filha referiu, durante o espectáculo, que a mãe atravessou uma ditadura militar que lhe custava a liberdade de expressão que procurava contrariar quando subia ao palco e tirava partido do microfone para "enfiar" os seus ideais na cabeça dos fãs.

Esse pôr de dedo na ferida, essa inquietação de não se limitar a ver as injustiças acontecerem, materializou-se na canção que se ouviu a seguir, 'Saudosa Maloca'. 'Vai Tudo Por Água Abaixo' tentou puxar por um público, tímido e sem saber ao certo como se comportar, mas o concerto teve alguma quebra, natural, ao dar a conhecer, mesmo aos seguidores mais fiéis, algumas das canções que talvez não tenham chegado naqueles tempos a Portugal. Em abono da verdade é preciso dizer-se que, ao contrário do que tem vindo a ser costume nesta sala, quem ali foi hoje foi ouvir um concerto de música e não ver um artista da moda dar um espectáculo.

'Vou deitar e rolar (Qua Qua Ra Qua Qua)', 'É Com Esse Que Eu Vou Dançar' e 'Querelas do Brasil' continuaram a deliciar um público que, por oposição à geração de Maria Rita, aprendeu a gritar e lutar pelos seus direitos, não se conformado com o empobrecimento social e mantendo sempre activa uma consciência de cidadania que hoje, admitamos, tanta vez nos falta. «Naquele tempo não se podia falar e a minha mãe falava, não tinha medo. Hoje em dia podemos falar e ficamos calados. Felizmente as coisas no Brasil parecem estar agora a mudar», conversa a cantora, enquanto na plateia alguém grita as seguintes palavras de ordem, alto e bom som: «Vamos também para a rua!».

'Me Deixas Louca' e 'Como uma Tatuagem' mostram o lado mais carnal de Elis Regina antes das muitíssimo inspiradoras e reveladoras 'Essa Mulher' e 'Se Eu Quiser Falar Com Deus' que Maria Rita anuncia como «duas canções em que o meu universo e o da minha mãe se encontram» ao mesmo tempo que chora o facto de nunca ter podido ligar à mãe, de madrugada, a perguntar-lhe: «o meu bebé não para de chorar, o que devo fazer?».

'Alô Alô Marciano' e 'Vivendo e Aprendendo a Jogar' começavam a ditar o final o espectáculo com cerca de duas e meia de duração, enquanto ouvimos mais histórias de festas, alegria e amizade que pautaram a amizade de Elis Regina com Rita Lee.

O encore traz uma Maria Rita com uma energia diferente e uma alma mais festiva para apelar ao aplauso e ao levantar das cadeiras para que o público a acompanhe nos eternos 'Fascinação', 'Romaria' e 'Madalena', bem escolhidos para o fecho, para ajudarem a criar um ambiente mais leve na despedida.

Talento, palavras fortes e humores irregulares, marcaram a vida de uma cantora que musicou a tragédia pessoal com uma elegância única. Se os fãs de Ivete Sangalo ou Daniela Mercury tivessem assistido a este concerto, provavelmente ficariam com a noção de que existem dois "Brasis" diferentes, retratados de uma forma tão distinta que hoje destacamos a inteligência e acutilância de espírito de Elis Regina que vive através deste espectáculo pensado de forma cuidada, onde se criou um clima de magia e de grande cumplicidade que a censura (ainda?!) não pode atacar.

Ovação: À coragem de Maria Rita se propor recriar um mito e fazê-lo bem.

Aplauso menos forte: Ao pouco público, ainda por cima quando o concerto teria como público-alvo uma geração que estará atravessar a fase da vida que permite alguma maturidade financeira.

Daniela Azevedo




























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