quinta-feira, 1 de novembro de 2012

"Não vou tomar o lugar de Elis" diz Maria Rita

Por Tom Cardoso - Para o Valor, de São Paulo

O CD duplo de Maria Rita "Redescobrir", que reúne 29 músicas do repertório de Elis Regina (1945-1982), pode significar o fim de um ciclo em sua carreira. Há dez anos, ela era apenas a menina que estreara na música, aos 24 anos (apesar de cantar desde os 14), e precisava conviver com a sombra da mãe. Maria Rita foi à luta. Venceu as comparações, evitou fazer parte da turma da Trama (gravadora que reunia filhos de artistas famosos, nem todos com talento para o ofício) e foi gravar com Tom Capone, experiente produtor, que viu em Maria Rita uma cantora de brilho próprio, apesar das semelhanças com Elis na voz, nos trejeitos - no temperamento.

Falar de Elis parece ser algo tenso e, ao mesmo tempo, prazeroso para a cantora. No fim, quem ganha é o público. A tensão é jogada de lado quando Maria Rita abraça o repertório deixado pela mãe.

'Ela tinha inteligência musical, um senso crítico muito apurado', diz Maria Rita sobre Elis Regina; semelhanças entre mãe e filha estão na voz e temperamento


Valor: Você se sente, enfim, segura para gravar um trabalho apenas com canções interpretadas por sua mãe. As comparações não a incomodam mais?

Maria Rita: Isso é um grande mal-entendido, alimentado por parte da imprensa, que virou uma bola de neve. Sempre deixei claro que não seria a continuidade de Elis. Nem eu e nem ninguém vai tomar o lugar dela. O fato de não gravar Elis não era para evitar comparações e sim para estabelecer meu lugar.

Valor: Mas pelo jeito a comparação ainda a incomoda...

Maria Rita: Já me incomodou mais. Já fiquei muito chateada, a ponto de ligar para jornalistas. Hoje a pressão diminuiu. São dez anos de carreira, algumas conquistas, números para mostrar. O meu público também amadureceu junto comigo, já consegue perceber que existem semelhanças e diferenças. O grande desafio deste trabalho foi encarar o repertório gravado por minha mãe, que, além de excelente, é muito difícil. Elis Regina não era só um rostinho bonito e uma voz afinada. Ela tinha inteligência musical, um senso crítico muito apurado.

Valor: Você falou em maturidade. Como era para uma menina, filha de Elis Regina, lidar com a pressão de ser cantora?

Maria Rita: A música era um ser vivo dentro de casa, com meu pai [o pianista e arranjador César Camargo Mariano] compondo, fazendo arranjos e com meu irmão Pedro Mariano me convidando para fazer backing vocal na banda dele. Mas, justamente por causa da presença forte da música em casa, eu tinha uma reação, típica de adolescente que precisa se autoafirmar, de ser do contra. Sabe aquela história do adolescente dizer: "Não vou arrumar o quarto". "Não vou lavar louça!". Comigo era: "Você tem que cantar!". E eu: "Não tenho!". No fundo eu tinha apenas uma certeza dentro de mim.

Valor: Qual certeza?

Maria Rita: Que eu tinha pelo menos a obrigação de me preparar para o plano B. Eu era filha de Elis Regina e, se a carreira de cantora não desse certo, pelos mais variados motivos, precisava estar preparada para ganhar a vida de outra forma. Fui morar fora, nos Estados Unidos, e estudei comunicação social [na New York University]. Cheguei a estagiar numa revista, mas sentia uma inquietação muito grande. Fiquei noites sem dormir. Até chegar uma hora que falei: "Bom, tentei me preparar para outra coisa, mas não é isso que quero". Mas a pressão não terminou depois que tomei a decisão de virar cantora. Piorou.

Valor: Por quê?

Maria Rita: Meu telefone não parava de tocar. Recebi convites de emissoras de televisão para dar entrevista. Eu dizia: "Não tenho nada para contar!". Minha carreira nem tinha começado e queriam ouvir minha história. Eu precisava construir a minha história, me preparar para fazer o melhor possível. Meu pai sempre me disse: "Música é com 'M' maiúsculo. É a comida que você come. A gente faz para os outros se divertirem, mas é algo muito sério". Não podia trair esses valores passados pelo meu pai. E fui nadando contra a corrente. As pessoas tinham pressa, eu não.

Valor: Você não foi pressionada pelos seus irmãos? Afinal, o Pedro Mariano integrava os Artistas Reunidos, projeto que reunia os filhos de Simonal [Simoninha e Max de Castro] e Jair Rodrigues [Jair Oliveira e Luciana Mello] e era produzido pelo seu outro irmão, João Marcelo Bôscoli, sócio da gravadora Trama. Só faltava você...

Maria Rita: Não teve pressão da família. Tive uma conversa com o João Marcelo e o sócio dele no comando da Trama, o André [Szajman], que me conhecia desde os oito anos de idade - estudamos na mesma escola. Eu disse a eles que acreditava no projeto Trama e que minha chegada seria um desserviço para a gravadora, já que todo mundo ia dizer que eu só tinha entrado lá por ser irmã do João Marcelo e do Pedro Mariano, a filha da Elis...

Valor: Mas os outros não tiveram esse receio e entraram...

Maria Rita: Era diferente. Eu era a única mulher, filha de um ícone poderoso da música brasileira. Quando voltei a morar no Brasil, o projeto Artistas Reunidos já existia havia dois anos. Eu chegaria atrasada: "Posso brincar com vocês? Passem a bola pra mim?". E anos depois, quando comecei a fazer sucesso, o João Marcelo disse que a minha não ida para a Trama foi o certa, que a gravadora não teria estrutura para "segurar o rojão". Só quando me uni ao [produtor] Tom Capone [1966- 2004] é que me senti segura para começar, de fato, a gravar.

Valor: Como foi trabalhar com Tom Capone?

Maria Rita: Foi mágico. Ele tinha grandes sacadas. Sabia o que eu queria. Era uma relação muito clara, fácil, não tinha esquisitices. Ele era destemido, o que para mim é uma qualidade fundamental, porque sou muito inquieta. O Tom dizia: "Você não é da MPB. Você é do metal!". Se pego alguém que fica me segurando é frustrante.

Valor: Você é muito inquieta?

Maria Rita: Penso em tudo. Você não sabe as coisas que passam pela minha cabeça. Tenho uma agressividade dentro de mim, sou feita de desamor, indignação.

Valor: Sua mãe era assim...

Maria Rita: Sim, todos somos. O João Marcelo também é assim. Ele dorme pouco, eu também. Não paramos. Mas ele sempre teve essa história de irmão mais velho, de me dar a mão para atravessar a rua, de não me deixar chegar perto do bueiro. E ele foi importante neste trabalho. Tive alguns momentos de insegurança...

Valor: Quais?

Maria Rita: Quando vazou, saiu no "Diário Oficial" que o projeto de canções da minha mãe havia sido aprovado para captar recursos pela Lei Rouanet, o telefone não parou de tocar. Isso foi em setembro do ano passado e o projeto era para março de 2012, ou seja, eu teria um tempo de gestação, para me preparar, estudar bastante. A reação da imprensa me assustou. Por um momento achei que estava pronta. Mas foi um exagero meu. Depois passou.

Valor: Você está grávida do segundo filho, uma hora vai diminuir o ritmo...

Maria Rita: Estou cansada, mas não consigo parar. Preciso dar atenção para o meu filho, para a minha barriga, mas ao mesmo tempo já estou pensando em vários projetos. Adoraria ter essa disciplina, de parar com tudo, mas não faz parte do meu temperamento. Já tive duas reuniões com a gravadora para falar do próximo projeto. Já tenho um show novo inteirinho na minha cabeça.

Valor: Falta a você uma dose de Marisa Monte, que consegue ficar cinco anos sem gravar...

Maria Rita: A Marisa é um gênio! Um gênio! Eu queria tanto ter essa capacidade de me desligar de tudo... Mas eu sou a Maria Rita e não a Marisa Monte.



"Redescobrir"

Artista: Maria Rita. Gravadora: Universal; R$ 36,90 (CD); R$ 38,90 (DVD).

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