quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Rennó das versões é Nego

24/09/09 - Terra Magazine

Há meses, transcrevi, numa das minhas crônicas, uma versão de Carlos Rennó, até então inédita, de How deep is the ocean, de Irving Berlin, que faria parte de um disco, projeto dele e de Jacques Morelenbaum, de versões brasileiras para canções feitas por compositores judeus-americanos. Eis o disco agora, prontinho, bonito, luzidio como o seu título, Nego.

Porque se aboliu o circunflexo nestes casos, meu Deus? Pra gente se confundir, pois é "nego" de "negro", e não de "negar". Como escreveu Rennó, os judeus escreveram canções incorporando o "elemento musical do negro em suas formações e em seus trabalhos", que se tornaram clássicos da canção norte-americana na primeira metade do século XX. E Rennó, que mata a cobra e mostra o pau, pôs as mãos à obra e enfrentou este hercúleo desafio de verter pro português-brasileiro algumas letras destas canções. Pois o meu amigo, apesar de magro, é forte quando pega da pena e dispõe-se a traduzir criativamente, dentro de uma tradição concreto-paulista, as lyrics, elevando a feitura de versões em português a um outro patamar, pelo rigor técnico, sem negar, no entanto, a filiação a uma tradição brasileira de ótimos versionistas como Braguinha, Haroldo Barbosa e Erasmo Carlos, cuja versão de Splish splash, de Bobby Darin, gravada por Roberto Carlos no início da carreira, é muito superior ao original. A propósito, Erasmo está soberbo em Nego, interpretando a versão de Summertime, dos irmãos Gerswhin e Heyward, verdadeira e profundamente jazzie.

Em 2000, Rennó já havia lançado o Cd de versões de Cole Porter e Gerswhin, que continha a versão pra Let's do it, de Porter, que se tornou Façamos, interpretada naquele disco por Chico Buarque e Elza Soares, e que entrou até em abertura de trilha de novela da Globo. Lembro que, ao ouvir logo aquele disco, estranhei algumas transposições culturais feitas por Rennó, mas depois fui me afeiçoando às mesmas, como quando se lida com um animalzinho, à primeira vista, exótico. Com o tempo, a gente se torna enamorado do bichinho e sai com ele a flanar pelas esquinas.

Assim se dá também com Nego. Gostei, inicialmente, muito da versão pra música de Berlin, simples e cristalina, cantada por Moreno, mas não atentei pra excelência da faixa Encantada, versão pra Bewitched, de Rodgers e Hart, interpretada por Maria Rita. Ouvindo atentamente, Rennó consegue soluções impressionantes, a partir do próprio título: "bewitched, bothered and bewildered" virou "inquieta, tonta e encantada", mantendo as aliterações, agora em "tê", que remetem ao artesanato buarquiano, swing norte-americano e malemolência brasileira amalgamados numa espécie de esperanto transcultural.

"Half-pint imitation", por exemplo, virou "meia-boca", mantendo o sentido da expressão em inglês, agora com o nosso molho. De vez em quando um "errei, sim" ataulfiano aparece e surpreende, tornando tudo família. E olha que a letra é extensa, mas a gravação em si segura a onda da versão, com uma Maria Rita cheia de fôlego, num crescendo que a faz, sim, inquieta e encantada, e nos deixa tontos de enlevo. Agora, dei de passear com Maria Rita pelas esquinas da Bahia, mãos dadas e tudo mais.

Jacques Morelenbaum é um parceiro e tanto, pelas sutilezas dos arranjos e intimidade com aquele universo, ele mesmo um judeu-brasileiro. Gal Costa, João Bosco, Simoninha & Ná Ozetti, todos contribuem estilisticamente pra dar corpo às invenções de Rennó e Morelenbaum, mas Seu Jorge, insólito em Fruta estranha (Strange Fruit), chega a dar um susto bom na gente. É a gravação mais diferente mesmo, e fica interessante compará-la com a de Billie Holiday em inglês.

Qual o segredo de Rennó, pra fazê-lo eficiente como poucos, numa modalidade tão difícil, como a de versionista, já que este tem que dar conta do que disse um outro, de um lugar outro, redizendo dum jeito próprio, sendo dois ao mesmo tempo? Ora, o amor, nada mais! Amor pela canção popular, forma curta e específica de expressão que faz a graça do nosso tempo, intimidade com este universo a um tempo encantatório e corriqueiro, despretensioso e grávido de ambições estéticas, mas na maciota, no sapatinho.


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