sexta-feira, 13 de junho de 2014

"Este lugar é meu, entende?"

A Critica de Campo Grande MS

Sexta, 13 de Junho de 2014 - 12:02
Fonte: Valor Econômico
Foto: Reprodução / Valor


Cantora deu entrevista durante almoço

São 3 da tarde, hora de encerrar o expediente na cozinha do Dalva e Dito. Para garantir comida à mesa, os pedidos foram feitos antes de Maria Rita chegar. Por telefone, a cantora informou o que queria para o almoço: surubim com folhas de jambu, "uma erva elétrica" - como está no cardápio. É assim que ela entra no restaurante. "Estou pilhadíssima. Acordei de ansiedade, bem antes do despertador. Às 6 da manhã eu já estava ó" - diz, escancarando os olhos miúdos atrás dos óculos. Está absolutamente envolvida com os detalhes da turnê do show "Coração a Batucar", que já passou por São Paulo, Rio e segue para Santos, Curitiba, Recife, entre outras cidades.

Ao entrar no salão, Maria Rita avista o músico Max de Castro, filho do cantor Wilson Simonal, e vai cumprimentá-lo. Depois de dois dedos de prosa com o amigo de infância, junta-se a nós. Coloca na cadeira a bolsa azul, no mesmo tom da cerâmica da parede. E "Coração a Batucar" volta à conversa. É ela quem assina a direção do show. "Não consigo dar na mão de outra pessoa, sou bem centralizadora", admite, beliscando um pedaço de pão.

Caxias em tudo o que faz, costuma chegar com cinco horas de antecedência para seus shows. Som, luzes, figurino e maquiagem ticados, é hora de reunir os músicos na coxia. Todos se abraçam em um círculo e ela comanda uma exortação ao sucesso, seguida de um grito que serve para "tacar os demônios pra fora". Para demonstrar o que diz, solta algo como um urro. Antes de levar um pedaço de pão à boca, completa: "Ah, e só entro no palco com o pé direito".

Nem bem começamos a saborear o couvert, o garçom aparece com a comida. O assunto volta no tempo. Filha de Elis Regina e Cesar Camargo Mariano, seria natural que a menina sonhasse em seguir a carreira dos pais. Certo? Errado. Justamente por ser filha de quem é, fugiu da sina. "O lance era o seguinte: minha mãe morreu no auge, de uma forma inesperada, virou um mito. Era muito complicado, desde que me lembro por gente, ser filha da Elis. As pessoas me paravam na rua. Era uma comoção que me incomodava."

Quando Elis morreu, Maria Rita tinha 4 anos. "Não tenho memória da minha mãe." Isso, para ela, tornava a semelhança entre as duas ainda mais enigmática. O pai costumava dizer: "Não entendo. É genética ou o quê? Como você é tão parecida com sua mãe, o gestual, a risada, o jeito de mexer no cabelo, se não conviveu tempo suficiente?" Acho que ele tinha um sentimento de que aquilo seria um sofrimento para mim, como veio a ser."

Interrompe a fala, abaixa a cabeça para o prato, volta, encara a repórter e pergunta: "Cara, como a gente vai fazer pra comer? Não se pode falar de boca cheia". E cai na risada. Depois de abocanhar a primeira garfada de peixe, diz que evitava cantar em público, mas banheiro era território livre. Pegava a escova de cabelo, "daquelas grandonas e achatadas", que fazia as vezes de microfone, e soltava a voz na frente do espelho. "Mas eu não dividia. Isso era só meu, ninguém sabia."

Durante anos, foi a única menina e a caçula entre os irmãos. João Bôscoli, produtor musical, e Pedro Mariano, cantor, davam-lhe sopapos, puxavam a irmã pelos pés e a persuadiam a jogar futebol de botão com eles. A pequena topava entrar na brincadeira, contanto que depois fizessem o gosto dela. "Mas claaaro", prometiam com os dedos cruzados. "Eles foram meus terrores. Mas superprotetores, ninguém chegava perto de mim." E, servindo-se de arroz, comenta, rindo: "Nem namorado".

Camargo Mariano tinha estúdio em casa, sempre que possível com vista para um jardim. Com um metrônomo marcando o compasso, passava horas compondo. "Quantas vezes eu não fiz o dever de casa no chão, quietinha pra não atrapalhar... Ouvia, inebriada." O pai, continua, sempre foi um sujeito empetecado e perfumado. Detalhista, carrega e passa a própria roupa que usa nos shows, desenha os cenários, cumprimenta do dono ao faxineiro do teatro. "Sou baba-ovo mesmo." Garota ainda, já acompanhava o pai ao trabalho, observava a passagem de som. Para que a filha não atrapalhasse, ele pedia que checasse se havia frutas no camarim ou contasse o número de cadeiras na plateia. "Preciso muito saber", dizia. "Eu me sentia tão importante..."

Em 1994, Camargo Mariano decidiu morar nos Estados Unidos, em Nova Jersey. Os irmãos, que já "eram donos do próprio nariz", ficaram no Brasil. Maria Rita, com 16 anos, foi junto. "Eu era muito ligada nos meus irmãos, foi difícil." Na escola, os alunos juravam à bandeira americana todas as manhãs, em pé e com a mão no peito. Menos Maria Rita. "A bandeira é sua, não é minha. Não vou jurar", conta, rindo. Pinga um pouco de pimenta na comida e de Pimentinha - apelido de Elis - na conversa. Uma das grandes vantagens de morar fora era que lá ninguém dava a mínima por ela ser filha de uma das maiores cantoras do Brasil. "Quem, Elis? Ah, tá. Não conheço", diziam seus colegas.

Estava tudo muito tranquilo até o dia em que Camargo Mariano convidou a filha para cantar com ele. Havia um grupo de amigos brasileiros em casa e a canção pedida foi "O Bêbado e a Equilibrista". Maria Rita fechou os olhos, como faz até hoje ao cantar, e soltou a voz. Quando os abriu, viu a sala tomada pela emoção. Era um tal de gente chorando, de olhos vermelhos e inchados. Maria Rita, com 19 anos, achou aquilo um disparate. Um dos presentes, o cantor sertanejo Chitãozinho, visivelmente comovido, aconselhou: "Você tem que cantar, menina". Ela olhou bem nos olhos dele e deu seu recado: "Escute. Minha mãe morreu e não volta mais". Deu as costas e saiu. "Aí rolou uma quebra geral no clima." Mais tarde, durante o jantar daquela noite, Chitãozinho - "pra quem eu fiz a malcriação" - chamou-a a um canto: "Olha, eu não chorei porque você se parece com sua mãe. Chorei porque desde que Elis morreu achei que nunca mais fosse sentir uma emoção como essa. E senti".

"Nunca esqueci o que ele me disse, ficou guardado. Foi lindo." Tudo muito bom agora, porque na época a comoção suscitou um descompasso. Maria Rita calou-se. Decidiu cursar comunicação social e estudos latino-americanos. "Aí me mudo para Manhattan e começo a viver minha vida", diz, largando os talheres no prato, apoiando os braços na mesa e abrindo as mãos no ar. Hoje, depois de anos de análise, entende que sua escolha foi uma maneira de se manter "abaixo do radar da geral". "Honestamente, era uma negação comigo mesma. Sempre fugindo." Pega de volta os talheres, dá uma garfada no peixe e prossegue.

Evitou, quanto pôde, cantar em público. Mas no banheiro, limpando vidros e passando aspirador, esquecia a promessa de se manter calada. Um amigo, que sempre a ouvia cantando do corredor, inscreveu-a em um concurso de calouros. Na hora H, Maria Rita entrou em pânico. "O que estou fazendo aqui? Meu Deus do céu, deu defeito na pessoa. Aí vaaaazooooou", lembra-se, puxando as vogais e risadas da audiência.

Fugiu para uma padaria das redondezas, até ser encontrada pelos amigos, que já estavam doidos atrás dela. "Eu estava toda tensa e falei: 'Vocês por acaso sabem a importância que isso tem pra mim?' Uma das amigas fez que sim e a convenceu a encarar o desafio. A turma prometeu ficar na retaguarda, para qualquer emergência. Lá foi ela, encarar a plateia e seus fantasmas. Subiu no palco sozinha, dispensou microfone - "eu não sabia usar aquele treco" - e cantou a capela. Abocanhou o primeiro lugar e US$ 100 para serem gastos em CDs. Qual era a música? "Velha Roupa Colorida", de Belchior: "(...) Você não sente e não vê/ mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo,/ que uma nova mudança, em breve, vai acontecer (…)".

A mudança estava à espreita. O ano era 2001. Setembro. Seu aniversário, dia 9. No dia 10, celebrou em um show de Michael Jackson. No dia 11, a notícia do ataque terroristaàs torres gêmeas de Nova York. "Minha cabeça entrou num processo de salvação automática muito louca de 'vou voltar para o Brasil'." E assim fez. Retornou ao solo pátrio e entregou-se à profissão que tanto evitou.

"Eu tinha que passar por essas turbulências todas. Foi um processo solitário, doloroso e de muitas dúvidas. Batalhei sozinha com meus demônios pra me encontrar. Só eu sei o que passei pra chegar a este lugar. Então esse lugar é meu", afirma, enfatizando o pronome possessivo e olhando nos olhos da repórter. "É meu, entende? Minha batalha não era em cima do palco como muitos artistas. Era na sombra, na coxia, de mim comigo mesma."

O celular toca. Maria Rita passa o aparelho para Alan, seu assistente, que almoça conosco, e perde o fio da meada. "Onde eu estava mesmo?" Sua estreia foi no minúsculo palco do Supremo Musical, em São Paulo, ao lado de Chico Pinheiro e Luciana Alves. Logo começaram a pipocar pedidos de entrevistas e propostas de shows. Declinou de todos, melhor não colocar a carroça na frente dos bois. Gravou, então, o primeiro CD, recusando a gravadora do irmão, a participação do pai e evitando o repertório da mãe. "Não juntei família, fui procurar minha turma. Existia um mau-olhado com a filha da Elis, não podia dar esse mole, sabe?"

Na sua turma estava o produtor Tom Capone, que sabia tirar o melhor de sua voz. "Maria - diz imitando o amigo -, com você a gente não pode fazer muito 'take', tem que ser no máximo no terceiro, senão fica muito pensado'." Arruma um montinho de comida no garfo, faz uma pausa e relembra, saudosa: "Ele tinha sensibilidade, entendia que comigo era na explosão ou não ficava legal".

Com o primeiro CD Maria Rita ganhou dois Grammys Latinos, nas categorias de melhor disco de MPB e de artista revelação. Quando ouviu seu nome, na premiação em Los Angeles, ficou "atordoada". "O Tom me levantou no colo, eu chorava muito. Explodi de tudo que tinha acontecido comigo até aquele momento." De lá foram para uma festa que a gravadora tinha armado para comemorar, no hotel onde estava hospedada. Maria Rita celebrou e logo voltou para seu quarto, sem provar o bolo. Capone foi levar um pedaço para a vencedora. "Foi a última vez que vi o Tom." Naquela noite, a caminho de outra festa, ele sofreu um acidente de moto e morreu. "Foi uma noite de emoção, do céu ao inferno em muito pouco tempo. Foi doído. Ficou difícil." Maria Rita abandona os talheres, junta as mãos e chora.

A esta altura, só estamos nós e os funcionários no restaurante. Mexendo na pulseira do relógio, e já refeita, ela conta que procurou Lenine para produzir seu segundo CD. Ligou para fazer o convite, mas, assim que ouviu a voz do músico, desligou, de nervoso. "É um cara que respeito demais." Mal o CD foi lançado, surgiu "o escândalo do iPod", ela rememora. A revista "Veja" publicou, na ocasião, que a gravadora Warner havia tentado corromper jornalistas com um aparelho, distribuído como parte da estratégia de lançamento daquele seu trabalho. O aparelho, dizia o texto, com o título "O mensalinho de Maria Rita", teria sido oferecido para a artista obter espaço em jornais e revistas.

"Quase derrubou o disco. Tinha gente que dizia: 'Quem pode pode, quem não pode que iPod'. Outros diziam que o artista não tem nada a ver com o marketing." Foi consultada sobre o plano de divulgação da gravadora? "Eu estava lá mixando, indo para a masterização. E eles, 'ah, a gente vai embarcar no iPod'. E eu, 'ah, tá bom. Dá um pra mim?'" Faz uma pausa, espeta um pedaço de peixe e prossegue: "E eu estou aqui". Como quem canta, debocha: "Ha, ha, ha, vai ter que me aturar."

O garçom leva os pratos e Maria Rita traz, novamente, a mãe para a conversa. Quando começou a cantar, alguns "órfãos de Elis" a acusavam de querer usurpar o lugar da maior cantora do Brasil. "Isso me tirava do prumo. Nunca quis ser a substituta da Elis. Sou filha que não teve mãe, para de encher." Como defesa, decide "não ter mais nenhum contato" com a mãe. "É uma série de reações, no emocional, que leva um tempo pra trabalhar, pra entender."

Quando completou dez anos de carreira, e bem mais segura de seu lugar, fez "Redescobrir", em que revisitou - em shows, CD e DVD - clássicos de Elis. "Aí fui tentar entender minha história e essa mulher incrível que é minha mãe. Aí ela voltou pra minha vida, meu colo."

Mas não foi mole. Um dia, depois de ouvir um monte de CDs de Elis, encostou na janela, descorçoada. "Bicho, o que fui fazer? A missão é hercúlea. Ela é excelência na música. Melhor pular fora." Olhou para a frente e deu de cara com a foto de Elis, que estampa a capa de um livro, mostrando a língua para ela, feito o conhecido retrato de Einstein. Maria Rita lembrou-se, então, de uma entrevista que viu da mãe. Quando indagada sobre o que desejava para a filha, Elis teria dito: "Que ela seja leve, nunca pesada." Reação imediata: "É isso aí, genial, mãe, continua tirando sarro da minha cara. Não é pra se levar tão a sério, exatamente. Não é pra ficar pesada. Mãe, valeu". Fala rindo e, puxando a manga da camiseta para cima, deixa algumas de suas muitas tatuagens à vista.

"Me dá um autógrafo", brinca Alex Atala, que acaba de chegar ao restaurante. Cantora e chef trocam algumas palavras, ele pergunta se está tudo bem conosco e vai para o salão de baixo participar de uma reunião.

Dispensamos a sobremesa. Já sorvendo o café, Maria Rita conta que "deu um nó na garganta" na primeira vez em que ouviu "Mãinha Me Ensinou". A canção, de Arlindo Cruz e Xande de Pilares, que faz parte do álbum "Coração a Batucar", não foi composta para ela, mas parece talhada para a cantora.

"Não tenho como não me identificar. As duas primeiras tomadas da gravação fiz aos prantos, não consegui terminar. É um retrato de um momento da minha vida, muito forte, em que trago de volta minha mãe, com seus ensinamentos, através da música. E também, como diz a canção, em que vivo um grande amor" - com o músico Davi Moraes, pai de Alice, sua filha caçula. Com a xícara de café na mão, cantarola: "Ainda me lembro com clareza/ O que mãinha me ensinou... Ah! Encontrei um amor assim/ é tudo o que sonhei pra mim..."

Dá um gole de café e conta que ser mãe não fazia parte de seus planos. "Como ser uma coisa que nunca tive? Como é que faço? Eu pensava assim." Hoje, Maria Rita tem dois filhos. Antônio, de 10 anos - de seu relacionamento com o diretor Marcus Baldini -, e Alice. " E, olha, estou fazendo direitinho o negócio", diz, com uma gargalhada.

A conversa é interrompida por um cantarolar em voz alta. É um personagem da rua, uma das lendas vivas do bairro, informa Maria Rita, ex-moradora dos Jardins, que há sete anos trocou São Paulo pelas praias cariocas. Já está escuro e ela volta ainda à noite para o Rio. De carro. "Menina, passagem de avião está uma loucura de cara!"

Ela está com 36 anos, a idade que Elis Regina tinha quando morreu. "Até aqui eu sei o que ela tinha feito, vivido, se tinha mudado ou não, cortado o cabelo, como estava. Daqui pra frente não sei nada, estou sozinha. Agora sou eu e eu mesma."

Um comentário:

  1. Ótima entrevista. A história dela é emocionante, assim como a voz!

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