sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Maria Rita no espelho



Enquanto enfrentava pela primeira vez o desafio hercúleo de reler a obra musical de sua mãe, Elis Regina, a cantora Maria Rita ficou grávida, de uma menina. A arte não dá conta da vida, mas essa não deixa de ser uma bela imagem. "Imagem", por sinal, é o nome da primeira canção de Redescobrir, o CD duplo ao vivo e DVD resultante do desafio.

Cantada por Elis em 1966, a bela "Imagem" trata do reencontro, no palco, entre um artista e seus admiradores. "Ai, que bom é ver vocês/ e cada vez que eu volto é pra dizer/ que sem ter vocês/ sem ver vocês/ não sou ninguém", cantava Elis em 1966, como canta hoje Maria Rita.

A filha encara a obra da mãe com concentração e responsabilidade colossais. A mãe não vive mais, e a filha aceita, provavelmente não sem sofrimento, transformar-se no cavalo alado capaz de manter a proximidade entre a artista que já não existe no mundo e seus sempre resistentes, se não crescentes, admiradores.

Indo além da canção, Maria Rita repete também o discurso falado que Elis acoplava a "Imagem" original. "Enquanto nossa música não voltar ao que é, nós lutamos. Faz escuro, mas nós cantamos. (...) É preciso cantar o que é nosso", declama a filha-intérprete, reproduzindo palavras e ideias que ainda valem, mas que já não valem mais. Há um caminho íngreme de pedras e contradições a escalar para que se reúnam mãe e filha, passado, presente e futuro, a MPB e nós que ainda a amamos.

"Como Nossos Pais" (1976), de Belchior, surge quase imediatamente para lembrar que Elis era contraditória por essência e que enfrentar Elis em 2012 é forçosamente penoso, doloroso, contraditório, tanto para ela como para nós que a(s) imaginamos. "Não quero lhe falar, meu grande amor/ das coisas que aprendi nos discos", diz Maria Rita, fazendo o contrário do que diz, antes de desaguar na conclusão evidente de que, mais uma vez, "ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais". Isso é e não é verdade. É impossível simplesmente decidir, cara ou coroa!, entre seguir adiante ou voltar a ser quem nós (ou nossos pais) éramos tempos atrás. As contradições se empilham — junto com as lágrimas — entre nós e nosso lívido espelho.

Maria Rita relê Elis Regina de modo reverente, sem grandes desvirtuamentos de arranjos e interpretações. Num dado momento, inclui uma introdução da big band jazz-funk Earth, Wind & Fire em "Zazueira" (1969), de Jorge Ben. Mas, no geral, ela está aqui para nos trazer Elis, não para subvertê-la. Esse princípio faz parte da opção pela reverência. O fato de as muitas semelhanças musicais entre mãe e filha não serem suficientes para ofuscar diferenças comoventes de interpretação é assombroso.

É evidente, em tudo, o desejo de reconciliação expresso pela filha que mal pôde conhecer a mãe - a mãe pessoa real, insubstituível pela imagem no espelho dos discos, cultivada por nós que não a conhecemos a não ser como artista. Filiada à vertente nacional-popular da MPB, Elis viveu às turras com os inovadores tropicalistas. Maria Rita até aqui tem transitado mais pela mesma vertente, mas quanto a isso há algo de novo em Redescobrir.

Há aqui um guitarrista chamado Davi Moraes, que até essa experiência vivera mais próximo da herança tropicalista do que do legado Elis-Chico Buarque-Edu Lobo-etc. Filho de Moraes Moreira, um dos fundadores dos Novos Baianos, Davi já tocou com Caetano Veloso, Marisa Monte, Ivete Sangalo, Vanessa da Mata, Adriana Calcanhotto. No balanço das bossas, todos sempre penderam mais para Gal Costa que para Elis Regina. Davi encara Elis com reverência, concentração e discrição comparáveis às de Maria Rita.

Se acaso Maria e Davi promoverem algum grau de reconciliação entre Elis e o tesouro (inclusive tropicalista) que ela ajudou a fundar, talvez possamos qualquer dia desses dizer que já não vivemos mais como viviam nossos pais, avós etc. A propósito, Davi Moraes é o pai da filha que a filha de Elis espera. No reflexo, está não apenas aquela que ainda vai nascer. Estamos todos nós, das estrelas pop às imagens que formamos delas.

Um comentário:

  1. Simplesmente fantástico esse projeto de Maria Rita cantando Elis Regina. Histórico. Notável mesmo. Elis excepcional, gênio, impar, singular, TUDO. Maria Rita espetacularmente notável, pura, especial, mas o que é o cerne da beleza absoluta desse espetáculo de reverencia ao mito Elis é a pureza de Maria Rita reverenciando Elis mas como Maria Rita. Duas Divas numa identidade inecedível. FATÁSTICO. E "David Moraes é o pai da filhinha da filha de Elis Regina" é de uma poesia linda de doer.

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