quinta-feira, 27 de março de 2014

'Coração a batucar' mostra que o samba de Maria Rita é bom, sim, senhor

Blog Notas Musicais


Resenha de CD
Título: Coração a batucar
Artista: Maria Rita
Gravadora: Universal Music
Cotação: * * * 1/2

"Mais uma vez / 
Aqui estou /
Não vou negar /
Eu vou representar com todo meu amor /
Cantando por aí /
Levando a alegria pro meu povo /
Não há nada que me faça mais feliz /
É tão encantador /
Meu samba, sim, senhor..."


Ao abrir seu segundo disco de samba com os versos de Meu samba, sim, senhor (Fred Camacho, Marcelinho Moreira e Leandro Fab, 2014), no toque do surdo e da cuíca, Maria Rita busca a conexão imediata entre Coração a batucar - álbum lançado hoje, 25 de março de 2014, no iTunes - e Samba meu, o CD de 2007 que rejuvenesceu seu público e com o qual a cantora paulistana cortou o cordão umbilical que a ligava à sua mãe Elis Regina (1945 - 1982). Ao subir o morro, levada por seu então produtor Leandro Sapucahy, Maria Rita fez um disco pagodeiro, de pé no chão. Nas lojas em edição física a partir de 8 de abril, Coração a batucar vem ao mundo sete anos após Samba meu, com menos pé no chão. Entre um e outro álbum de samba, a artista lançou CD de entressafra - Elo (2011), produto que selou o fim de sua passagem pela Warner Music - e religou o cordão umbilical em tributo a Elis prestado em controvertido show perpetuado no CD, DVD e blu-ray Redescobrir (2012). Com a cotação ainda alta no mercado fonográfico, mas sem o prestígio e o status alcançados de forma instantânea com a edição de seu primeiro álbum, Maria Rita (2003), a cantora se refugia mais uma vez no samba. Mas seu coração batuca em cadência menos pagodeira neste disco gravado entre novembro e dezembro de 2013 sob a direção musical da própria Maria Rita e com arranjos confiados a um pianista, Jota Moraes, habituado a tocar em discos de MPB. Como já sinalizara o single Rumo ao infinito (Arlindo Cruz, Marcelinho Moreira e Fred Camacho, 2014), um dos três belos sambas fornecidos pelo bamba carioca Arlindo Cruz (nome recorrente no CD, mas sem a onipresença de Samba meu), Coração a batucar se ambienta entre o fundo de um quintal e o interior de uma boate. Dividida entre André Siqueira e Marcelinho Moreira, a percussão alcança destaques variados ao longo das 13 músicas do CD (a edição digital jà à venda no iTunes traz duas faixas-bônus). Em Saco cheio (Dona Fia e Marcos Antônio, 1981), sucesso da fase inicial da carreira fonográfica do cantor e compositor carioca Almir Guineto, a percussão é fundamental para simular clima de terreirão do samba no início e no fim da faixa. A interpretação irreverente da cantora acentua o deboche contido nos versos que brincam com o hábito do povo brasileiro de invocar Deus a todo momento. Uma das três regravações do disco, Fogo no paiol (Rodrigo Maranhão, 2010) é apagado pelo arranjo de clima menos quente. Esperto, o piano de Rannieri Oliveira se insinua ligeiramente jazzy em trecho instrumental deste tema lançado pelo cantor e compositor Rodrigo Maranhão em seu segundo disco, Passageiro (2010). Músicos orquestrados por Jota Moraes, mentor de todos os arranjos, o baixista Alberto Continentino, o guitarrista Davi Moraes e o baterista Wallace Santos armam cama segura para que Maria Rita caia no samba sem perder a pose de grande dama da MPB. Mas tal pose cai quando a artista dá a decisão em malandro esperto quando canta No meio do salão (Magnu Souza, Maurílio de Oliveira e Everson Pessoa, 2014), samba da turma do paulistano Quinteto em Branco e Preto. "Comigo não tem malandragem / Se o bicho pegar desta vez / Vai sobrar para você", enquadra, tal qual uma Anitta do samba. Do salão, o disco cai para Abismo (Thiago Silva, Lele e Davi dos Santos, 2014), bonito pagode romântico que, no registro refinado de Maria Rita, cresce e se torna um dos trunfos do repertório nem sempre à altura da voz da cantora. Fiel ao compromisso da artista de levar alegria para o povo, firmado nos versos iniciais de Meu samba, sim, senhor, Abismo contemporiza a dor de amor. Dor da qual o samba é o mensageiro em Vai meu samba (Noca da Portela e Sérgio Fonseca, 2011), um dos pontos mais altos do disco. Maria Rita regrava o samba de Noca da Portela em andamento lento e em clima cool de tom ritualístico. Samba mais expansivo, Abre o peito e chora(Serginho Meriti, Rodrigo Leite e Cauíque, 2014) trata a dor com a esperança de que novo sorriso vai gerar outro despertar para o amor e a vida. No mesmo tom positivista, Bola pra frente (Xande de Pilares e Gilson Bernini, 2014) prega resistência em tempos existencialmente noturnos. "Deixa clarear / Que a luz do dia vai brilhar", receita a cantora neste samba menor, do tamanho de Nunca se diz nunca (Xande de Pilares, Charlles André e Leandro Fab, 2014). Contudo, antes que o disco balance e caia, Arlindo Cruz e Joyce Moreno salvam a pátria. Cria da Bossa Nova, a compositora carioca fornece uma das melhores músicas do disco, No mistério do samba, tema feliz, iluminado, cheio de suingue. Um samba que celebra a alegria de poder fazer e cantar samba. Em tom terno e grato, Mainha me ensinou (Arlindo Cruz, Xande de Pilares e Gilson Bernini, 2014) festeja o ensinamento que passa de mãe para filha. Com contracanto que valoriza a gravação, Maria Rita dá sua receita de paz, amor e harmonia no habitual tom leve e para cima do disco - o que justifica a alocação como bônus, exclusivo da edição digital de Coração a batucar, das regravações dos dois sambas do compositor carioca Luiz Gonzaga do Nascimento Jr. (1945 - 1991), o sempre questionador Gonzaguinha. Comportamento geral (1973) e Um sorriso nos lábios (1976) são sambas pesados, asfixiados pelas amarras da ditadura instaurada no Brasil em 1964. No fim, É corpo, é alma, é religião (Arlindo Cruz, Rogê e Arlindo Neto, 2014) põe no quintal o samba batido na palma da mão, fechando disco que, embora deixe a sensação de que Maria Rita pode e deve mais por ser a grande cantora que sempre foi, supera Samba meu, provando que o samba da filha de Elis é bom, sim, senhor. Como diria Chico Buarque, deixe a menina sambar em paz...

Nenhum comentário:

Postar um comentário